Muito pouco se sabe sobre Maria de Lourdes Castro Pontes, uma jovem operária aspirante a dramaturga que encontrou, em meio ao efervescente mundo do teatro na São Paulo do início do século 20, sua verdadeira paixão e vocação. Resgatando a memória dessa figura singular — que tinha muitos nomes e era conhecida tanto pelo apelido Dayse quanto pelo codinome Cyclone — a cineasta Flávia Castro trouxe para as telas a história de uma mulher que lutou para alcançar seus sonhos e ter seu nome reconhecido.

Em meio ao ambiente opressivo de um Brasil que acabava de chegar ao novo século, ter uma mulher como autora de uma peça era visto como algo vulgar e sem apelo para o grande público. Diante disso, Cyclone (interpretada por Luiza Mariani) deu seus primeiros passos no Theatro Municipal de São Paulo, escrevendo peças em coautoria com seu amante, Heitor Gamba (Eduardo Moscovis), mas sempre tendo seu nome ocultado dos créditos para evitar polêmicas.
Tudo muda quando surge o desejo inabalável de Cyclone de estudar teatro e produzir peças na França, berço da dramaturgia da época. A partir daí, o espectador é confrontado com todas as dificuldades impostas a uma mulher solteira em 1919 que desejava perseguir seus sonhos. Como ser aceita em um programa francês de dramaturgia se nenhuma peça levava seu nome? Como viajar para outro país sem a autorização expressa de um pai ou marido? Mulheres não podiam viajar de forma independente sem um documento formal assinado por uma figura de autoridade.
A situação piora quando Cyclone descobre uma gravidez indesejada que coloca em risco todos os seus planos profissionais e pessoais. Determinada a interromper a gestação, Dayse embarca em uma jornada que a leva aos limites na busca pelo direito ao próprio corpo e ao próprio destino.

CONVERSA COM O ELENCO
Em pré-estreia realizada no Theatro Municipal de São Paulo, o Papo Geek teve a oportunidade de conversar com a diretora Flávia Castro e com a atriz Luiza Mariani, presentes no lançamento.
Questionada sobre como Maria de Lourdes Castro Pontes reagiria à criação de um filme livremente inspirado em sua vida, Flávia comentou: “Eu acho que ela ficaria feliz, porque o filme é uma afirmação do talento de muitas mulheres.”
Já Luiza Mariani falou sobre a relação entre um filme sobre teatro e o momento atual, em que ambas as formas de arte correm riscos de desvalorização: “Eu acho que a gente está num momento muito bom cinematográfico. Eu torço para que as pessoas assistam ao filme e que ele gere debates de todas as ordens. O filme trata de uma personagem que sonha em ser dramaturga, mas, mais do que isso, é uma mulher tentando existir além dos muros impostos a ela — e eu acho que são muitos.”
Sobre o fim trágico de Maria de Lourdes Castro Pontes, que morreu aos dezenove anos em decorrência de um aborto malsucedido, Mariani comentou — já que se trata de uma história de conhecimento público: “A gente tem uma liberdade no filme. Resolvemos não matar essa personagem. A Cyclone da vida real é uma mulher que morreu muitas vezes: ela morre no aborto, a obra dela é desviada… então fizemos a escolha de não matá-la uma terceira vez e construir uma história possível para essa mulher dura.”

OPINIÃO
Cyclone chama atenção não apenas pela metalinguagem — por ter sido gravado e exibido primordialmente no Theatro Municipal de São Paulo — mas também por cumprir uma função essencial do cinema: resgatar uma história por tanto tempo esquecida, agora apresentada a uma nova geração que definitivamente deve conhecer Maria de Lourdes Castro Pontes. Sua trajetória serve como lembrete de um passado aterrador para mulheres, cujas cicatrizes ainda reverberam nos movimentos feministas contemporâneos.
A produção é belíssima. Mesmo com poucos cenários, a trama transporta o espectador para uma São Paulo de 1919, às vésperas do movimento modernista. O filme utiliza um filtro que escurece levemente a imagem — longe de prejudicar, ele cria tons terrosos e amadeirados que remetem a uma cidade construída majoritariamente em madeira e pedra, oferecendo uma estética muito marcante.
Embora Luiza Mariani possa parecer, à primeira vista, mais velha do que os dezenove anos de Dayse, ela compensa isso com talento e uma potência singular, que transmite com precisão a personalidade forte exigida pelo papel.Cyclone é, de toda forma, uma história delicada, narrada com sensibilidade e intensidade. Certamente vai permanecer no coração e na mente de todos que a assistirem. O filme chega aos cinemas no dia 30.



