O cinema de terror busca inspiração em contos de fadas, mas poucos o fizeram com a inteligência afiada e o horror corporal visceral de “A Meia-Irmã Feia” (título original: The Ugly Stepsister). Dirigido por Emilie Blichfeldt, em sua estreia corajosa e impressionante, o filme transforma a clássica história da Cinderela em um pesadelo satírico, com foco na personagem de Elvira (interpretada com maestria por Lea Myren), a meia-irmã “feia” que se submete a extremos para alcançar a padronização estética e o status social.
O filme é, sem rodeios, ótimo e muito bem desenvolvido. Blichfeldt não apenas subverte a narrativa romântica de Disney, mas mergulha de cabeça nos temas sombrios que permeiam os contos originais e, mais importante, a sociedade contemporânea. A busca obsessiva pela beleza e a aceitação em um reino onde a aparência dita as regras são exploradas através do body horror (e que body horror!) As comparações com filmes como ‘A Substância‘ são inevitáveis, mas “A Meia-Irmã Feia” estabelece sua própria identidade, oferecendo cenas gráficas e perturbadoras (em especial as que envolvem cirurgias e automutilação, sem querer dar spoilers) que servem como metáforas cruas e chocantes para as pressões estéticas enfrentadas, sobretudo, pelas mulheres.
A construção da personagem Elvira é o coração da trama. Longe de ser uma mera vilã, a sua jornada é apresentada com uma complexidade que, de forma curiosa, mantém o espectador ao seu lado, mesmo diante de atitudes questionáveis. É um retrato angustiante de alguém aprisionada por expectativas irrealistas e disposta a tudo por um lugar à mesa real, um casamento com o Príncipe Julian (o verdadeiro prêmio de ascensão social, e não de amor romântico).
Tecnicamente, o filme brilha. A direção de arte e os figurinos, apesar do contexto de época, trazem uma estética que, em seu humor negro e distorcido, ressoa com questões atuais. O uso de símbolos e a maneira como o roteiro (também de Blichfeldt) desglamouriza até mesmo a Cinderela (Agnes, interpretada por Thea Sofie Loch Næss, que aqui é mais realista e pragmática do que a princesa inocente) demonstram a sua excelente construção narrativa.
“A Meia-Irmã Feia” é um soco no estômago e um espelho para a futilidade da nossa cultura. É um filme que, apesar de suas imagens chocantes, entrega uma mensagem profunda sobre o custo da perfeição e os limites que estamos dispostos a cruzar. Definitivamente, uma das produções mais relevantes e impactantes do cinema de terror recente. Não é apenas uma reinvenção de um conto de fadas; é um grito de horror corporal e psicológico que ressoará muito depois que as luzes da sala se acenderem. Um trabalho muito bem desenvolvido que merece ser visto e debatido.



